sexta-feira, 19 de agosto de 2011

VIOLÊNCIA

Sob as leis do tráfico
À margem do Estado, criminosos estabelecem códigos de conduta para os moradores das favelas cariocas






MATEMÁTICA
No Morro da Providência, o número 3 é evitado
A assistente social Cátia Regina tem uma maneira peculiar para entrar com seu carro na favela em que trabalha, na zona norte do Rio de Janeiro. Antes de subir pela entrada principal do morro, pisca a luz do carro três vezes. A favela é dominada pela facção criminosa Terceiro Comando e quem não repetir a reverência com os faróis é parado e revistado pelos traficantes locais. Se o visitante acionar as luzes apenas duas vezes, as conseqüências podem ser piores. O ato seria considerado uma provocação por fazer referência ao número 'dois', adotado pela facção rival, o Comando Vermelho. Essas são regras não-escritas, parte de um código de conduta incorporado ao cotidiano de 1,4 milhão de pessoas que vivem em favelas no Estado do Rio e dos milhares que freqüentam diariamente essas áreas. ÉPOCA ouviu moradores, visitantes das favelas, policiais e traficantes para revelar um quadro das leis impostas pela criminalidade em que as normas do Estado praticamente não valem.
NAS FAVELAS DO COMANDO VERMELHO
Principais: Complexo do Alemão, Morro da Providência
e Vigário Geral
Leis
Não se fala a palavra 'três' ou 'terceiro'. Fala-se 'dois mais um'
Não é recomendável usar roupas da grife TCK, assumida pelo grupo rival Terceiro Comando
De tanto passar pela boca-de-fumo em Acari, favela dominada pelo Terceiro Comando Puro (TCP), a socióloga Berenice já se acostumou com a estranha contagem dos meninos do 'movimento': 'Um, um mais um, três, quatro' é como contam tanto o dinheiro quanto os papelotes de cocaína. A mesma coisa acontece quando ela vai a locais sob o domínio do Comando Vermelho, como as Favelas do Complexo do Alemão. A diferença é que lá os numerais 'três' e 'terceiro' é que foram extintos do vocabulário. 'Ninguém pede três cervejas no bar, só duas mais uma', relata.
Apesar disso, a maior marca do Comando Vermelho não é o número dois, associado aos vértices da letra V no nome da facção, mas a cor. Por influência dos mais velhos, desde criança o traficante João, que pertence ao Terceiro Comando, evita usar roupas vermelhas. Hoje é líder do tráfico de drogas do morro em que nasceu e só se esquece do dogma quando veste a camisa rubro-negra do Flamengo. 'O vermelho é misturado com o preto na camisa, poxa! Também aceito nota de um mais um reais, sem problema. Principalmente se forem três juntas', brinca.
Marco Antonio Cavalcanti/Ag. O Globo
COR
No Complexo da Maré, a única camisa vermelha permitida é a do Flamengo
Além de números e cores, as facções cariocas têm grifes favoritas. O logotipo da marca de roupas de surfe Cyclone lembra a sigla CV. Já a sigla da extinta grife TCK tornou-se Terceiro Comando do Kiko - nome de um líder histórico da facção - para os jovens seguidores. 'Ninguém mata ou morre por usar uma marca de roupa', explica Sérgio, morador da Favela de Parada de Lucas, dominada pelo Terceiro Comando. 'Mas sair com a roupa errada é considerado provocação, e a molecada evita.'
Seja qual for a facção, o principal código das favelas do Rio é a segurança das bocas-de-fumo. A primeira pergunta que um desconhecido ouve em algumas favelas é se quer 'pó de dez' ou 'pó de cinco' (o valor das porções de cocaína). Se recusar a oferta, ele será vigiado com cuidado por olheiros do tráfico. Se não tiver destino certo na favela, receberá sinais de que não é bem-vindo. Se tiver sido convidado por um morador, poderá subir à vontade e provavelmente vai receber ajuda de alguém ligado ao 'movimento', ou seja, ao tráfico. Mas qualquer deslize do visitante ficará na conta do morador que o convidou.
NAS FAVELAS DO TERCEIRO COMANDO
Principais: Vila do João e Vila dos Pinheiros, no Complexo da Maré, e Parada de Lucas
Leis
Para entrar de carro em morros do Terceiro Comando, convém piscar faróis três vezes
O número 'dois' (assumido pela facção rival) é substituído por 'um mais um'
Não é recomendável o uso de roupas da cor vermelha, principal símbolo da facção rival, nem da grife Cyclone, a preferida pelo CV
Quando se entra de carro, a regra é agir como se estivesse numa blitz policial: farol baixo e luz interna acesa. Para entrar de moto, o capacete é proibido. Caminhões com carroceria fechada, ou baú, são sempre vistoriados pelos soldados do tráfico. A menos que sejam conhecidos, normalmente por suprir o comércio local. Na hora de se vestir, a regra geral é não usar casacões ou roupas embaixo das quais se podem esconder armas ou drogas com facilidade. E nunca é seguro incluir entre os pertences objetos como câmeras de vídeo ou fotográficas e gravadores. O visitante pode ser confundido com um espião - ou 'X-9' - e sofrer sérias conseqüências.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.